Passagem do Mirandês
a Língua OficialFonte: Jornal
Público (Fernando Magalhães) - www.público.pt
O projecto de lei do socialista Júlio Meirinho visa reconhecer oficialmente a
existência da língua mirandesa, cujas origens são anteriores à nacionalidade, deverá
ser conhecido como língua oficial em Portugal. O ensino na escola e a possibilidade de a
administração pública elaborar documentos e fazer atendimento em mirandês são alguns
dos pontos desta lei.
O mirandês é falado por cerca de 15 mil pessoas numa "área de
aproximadamente 500 quilómetros quadrados, a sudeste do distrito de Bragança, ao longo
da fronteira com a Espanha, abrangendo o concelho de Miranda do Douro e uma parte do
Vimioso", escreve Júlio Meirinho, natural daquela região, na fundamentação do
projecto de lei.
Nem português nem castelhano, nem sequer uma mistura dos dois, o mirandês é
uma derivação do asturo-leonês, vestígio histórico dos tempos anteriores à
fundação nacional, quando aquela região fazia parte do Reino de Leão. O isolamento do
resto do país e o facto de não pertencer a Espanha permitiu a sobrevivência do
mirandês, quando o castelhano e o português se impuseram como as línguas dominantes.
"Embora o mirandês tenha evoluído de uma forma própria, é evidente a
sua filiação no asturo-leonês", que ensina mirandês na Escola EB2 de Miranda do
Douro.
Foi Leite de Vasconcelos que revelou oficialmente a existência do mirandês, em
1882, e que fez os primeiros estudos sobre esta língua. Mas o falar de Miranda permaneceu
envergonhado - "a língua do campo, do lar e do amor", como dizia Leite de
Vasconcelos durante muitos anos.
O "chaco" e o "fidalgo"
Na região, só as gentes das aldeias o continuaram a falar, enquanto em Miranda
do Douro, a sede do concelho, se adoptava a "língua fidalga" (o português).
O mirandês era o "chaco" (lê-se tch), palavra associada "a uma coisa
baixa, à vergonha", explica Júlio Meirinho.
Mas sempre houve quem lutasse pela afirmação das populações da Terra de
Miranda, reclamando o reconhecimento oficial de uma língua que hoje continua a ser usada
pelos habitantes de aldeias como Fonte de Aldeia, Duas Igrejas, Freixiosa, Vila Chã ou
Palaçoulo.
No ano lectivo de 1985/86, um despacho do Ministério da Educação autorizou
"a inclusão, a título facultativo, no plano curricular do 5º ano de escolaridade,
da disciplina de língua mirandesa". Mas não há programa oficial, nem material
didáctico e o ensino foi completamente entregue ao professor Domingos Raposo. Com a
aprovação deste projecto de lei, no entanto, "é reconhecido o direito da criança
à aprendizagem do mirandês nas escolas do município de Miranda do Douro. No ano lectivo
passado, 40 dos 86 alunos da Escola EB2 de Miranda do Douro, dos 5º e 6º anos, estavam
matriculados na disciplina."
"Eiterna i nobre hardança"
"Traz os Montes", da cantora Né Ladeiras, natural de Trás-os-Montes,
levou o conhecimento do mirandês ao grande público. "Perlimpinchim" é um
exemplo de canção de embalar, mas cujos puristas franzem o nariz. Contudo é inegável a
contribuição deste trabalho para a divulgação de uma língua que a própria União
Europeia reconhece, ao incluí-la numa lista de outras em extinção. O mirandês ocupa o
34º lugar num "ranking" de 48, integrando o grupo das que se encontram em maior
risco de desaparecimento.
A "lhêngua" mirandesa, profundamente enraizada na vivência rural das
populações do planalto mirandês, inclui-se na antiga comunidade linguistica das
"hablas lionesas" (falas lionesas), descendentes do latim popular mas assimilou
no seu léxico elementos do galego, do castelhano e do português, possuindo embora uma
terminologia e fonética próprias, carregadas de musicalidade. Como escreveu o Padre
Mourinho: "Ah! Fala nuôssa i siêmpre biba/ La mais rica, eiterna i nobre
hardança/ Qu'na beisos de criança/ Me dórun cul pan negro/ Mius pais í mius abós/
Falai-la, mius armanos./Guardai-la!.../ Stimai-la! .../Amai-la!.../ Fazei-la bibir an
bós!.../ Pus s'eilha se bai morrendo/ Nun ajudeis a anterrá-la."
A sobrevivência desta língua dependerá do modo como as novas gerações
souberem acrescentar as suas próprias vivências às dos seus antepassados; do cultivo de
uma literatura mirandesa e da perpetuação dos elos que a unem à música. Questão
complexa que levanta dificuldades e polémicas de vária ordem pois são as populações
que renegam as origens (e consequentemente a sua língua, de que muitos se envergonham), e
abandonam as aldeias. Há também o problema dos dialectos secundários: a
"lhêngua" que se fala em Sendim é diferente da que se fala em Fonte de Aldeia,
distando as duas localidades meia dúzia de quilómetros.
Convenção Ortográfica
Por este motivo, um grupo de investigadores universitários da área da
linguistica - como Manuela Barros Ferreira, Ivo de Castro e Rita Marquilhas, da Faculdade
de Letras de Lisboa, Cristina Martins da Universidade de Coimbra, António Bárbolo Alves,
da Universidade do Minho, e Domingos Raposo - elaborou já uma Convenção Ortográfica da
língua mirandesa.
Sendo inquestionável a importância de personalidades como as do Padre
Mourinho, falecido em 1995, ou, presentemente, de Domingos Raposo, na recolha, estudo e
preservação de espécimes linguísticos arcaicos, não será menos importante a forma
como os mais novos souberem revificar os alicerces, acrescentando novos termos e novas
sonoridades ao mirandês original. (Texto adaptado a partir de uma
notícia do Jornal Públco)