Anne Caufriez, de
origem Belga, escreve sobre Trás-os-MontesFonte: Fernando de Sousa - Delegado em Bruxelas (Diário de Notícias) - www.dn.pt
Anne Caufriez não é apenas uma estudiosa de Trás-os-Montes. Ao longo de anos,
ganhou uma quase fascinação por aquela zona de Portugal, agora bem evidente no livro que
está a lançar sobre a música popular e etnografia transmontana, Le Chant du Pain (O
Canto do Pão).
Quando recebeu o DN na sua casa em Bruxelas, Anne Caufriez disse que gosta de
outras regiões de Portugal, como o Alentejo, mas "Trás-os-Montes é outro mundo.
Há muita dignidade nos transmontanos", o que estará ligado às características
geográficas de "uma região de contrastes extremos".
Esta edição do Centro Cultural Calouste Gulbenkian de Paris traça o percurso dos
romanceiros que deixaram para a posteridade histórias de grande originalidade ligadas à
vida quotidiana, especialmente as colheitas, e à tradição histórica e religiosa. Anne
Caufriez faz notar, com alguma surpresa e muita admiração, que muitos destes são ainda
hoje cantados pela população da região, o que lhes dá mais vida, bem integrados no
presente, apesar das origens remontarem ao século XVI.
Notou ainda que muitos romances, cantados pelo povo durante os trabalhos do campo, incluem
de início uma referência a uma altura especial do dia, como a alvorada, o meio-dia, o
pôr do Sol, ligada a actividades rurais específicas. Em primeiro, estes romances são
cantados apenas nessas horas, o que demonstra uma aplicação sofisticada do cancioneiro
tradicional à realidade quotidiana. Para Anne Caufriez, este "é uma canção que
preenche todos os papéis".
Muitas das histórias cantadas nesses romances são luso-espanholas, atravessam
fronteiras, relatos do período com um relacionamento nem sempre amigável entre os dois
países. A localização especial de Trás-os-Montes tornou a região mais sensível a
tais situações, sendo de notar que muitas aldeias da área se viram envolvidas em
conflitos fronteiriços intensos.
A autora de Le Chant du Pain observa que também há tradições de romances noutras
regiões do País, mas sublinha que em Trás-os-Montes adquirem características
particularmente interessantes.
Também há paralelismos com outras regiões do continente europeu, mas os temas abordados
são específicos, predominância das referências aos mouros em Portugal, tal como nos
Balcãs se cantam as histórias com os turcos.
A autora conclui que a tradição dos romanceiros chegou a Portugal através da Galiza,
com as peregrinações a Santiago de Compostela, também com grande influência dos
mosteiros da região. Desta forma, procura contrariar teses, defendidas em Espanha, de que
esta tradição vem de Castela. "Também por isso se pode entender a originalidade de
Portugal nessa época", comenta Anne Caufriez.
O livro deve ser lido em combinação com outro trabalho da mesma autora, Romances de
Trás-os-Montes. Aqui se incluem 136 romances, com a respectiva transcrição musical e
tradução das poesias. Anne Caufriez faz notar que não foi fácil traduzir estas letras
para francês, pelas suas características assentes na expressão oral. Esta obra é
acompanhada de um CD com as gravações que aquela etnomusicóloga realizou no terreno.
A autora dedicara a sua tese de doutoramento, na Escola de Altos Estudos em Ciências
Sociais de Paris, aos romances de Trás-os-Montes. Na preparação deste livro teve a
oportunidade de aprofundar as suas pesquisas e procurar conferir-lhes um tom mais
acessível a um público mais amplo.
O livro dispõe de capítulos mais especializados, dedicados aos iniciados, mas uma grande
parte desenha a vida quotidiana em Trás-os-Montes, que muito contribui para explicar por
que razão os romances se desenvolveram desta forma.
Com este estudo, Anne Caufriez contribui para que as características específicas de
Trás-os-Montes sejam melhor conhecidas no estrangeiro e também pretende contribuir para
uma ligação mais íntima com as novas gerações de portugueses.
Anne Caufriez já está a concluir um novo estudo, desta vez sobre Porto Santo, com
"a crónica da vida de uma ilha através da sua música". Está a elaborar esta
obra de forma romanceada, procurando estimular a imaginação do leitor sobre o que será
viver num tal ambiente.
Fernando de Sousa