Não fazendo parte da quase totalidade dos acervos museológicos e
arquivísticos, a cultura imaterial continua condenada ao definhamento e à
extinção, dada a ausência de medidas oficiais. Essa constante incapacidade das nossas
autoridades ministeriais, esse "esquecimento" por parte dos sucessivos
políticos (1), pode-nos levar a interrogar sobre se não estaremos perante algo de nulo
interesse, de pura abstracção ou de impossível realização. Porém, não é disso que
se trata, mas de insuficiente sensibilidade, conhecimento e vontade política.
De facto, tanta inércia, alheamento, incúria, desresponsabilização e incompreensão
tornam-se, cada vez mais, não apenas absurdos, mas igualmente inadmissíveis. Com efeito,
desde as oralidades à música, da medicina popular à dança, até à religiosidade
popular e aos simbolismos existentes em certos lugares e objectos, tudo isso nos revela o
insubstituível e inestimável valor da nossa cultura tradicional, realidade mais do que
suficiente para afastar equívocos, eliminar hesitações e permitir avançar com céleres
e adequadas medidas. Portugal tem de reconhecer todo o merecimento à literatura popular,
seja loa, entremez, provérbio, conto, oração, lenda, auto teatral..., aos rituais
colectivos sob a invocação de santos, às hierofanias detectáveis em determinados
elementos naturais: fontes, árvores, pedras...; aos cantos de trabalho, às melopeias,
aos instrumentos musicais como as violas, campaniça, toeira ou beiroa possuidoras de um
inconfundível e delicado toque; às práticas curativas e cautelas supersticiosas e às
fórmulas mágicas; a certos bairrismos e rivalidades vizinhas que tanto se detectam numa
chega de bois como nas largadas e corridas de touros, seja à corda ou ao forcão; a
certos jogos de perícia individual efectuados nos largos das aldeias e em adros de
igrejas...
O que falta inventariar e documentar de forma sistemática é imenso e as medidas
incentivadoras e coordenadoras têm de partir do poder central. O mais tarde, em certos
casos, pode ser demasiado tarde. Um instituto constituído numa perspectiva
desburocratizada - e sem perder o mínimo sentido da responsabilidade -, virado
essencialmente para o trabalho de campo, para a recolha etnográfica, é desejável e
possível. As delegações regionais do MC, revalorizadas com a componente antropológica
de actuação, poderiam ser uma também boa alternativa à situação paralisante e
nefasta em que se encontra o nosso património incorpóreo.
Aliás, a este propósito, faz todo o sentido que uma região como Lisboa e vale do
Tejo venha a dispor de uma delegação regional. Facto tanto mais urgente quanto sabemos
encontrar-se aqui - para além de uma significativa presença multicultural, pluriétnica
e multirracial - uma vasta população autóctone estremenha e ribatejana, cujas raízes
culturais importa pesquisar e revalorizar.
É verdade que numa das três propostas do Programa Cultura Popular se pretende apoiar
"projectos de estudo e investigação, levantamentos monográficos e
etnográficos", o que é inovador e de elogiar, mas que não pode excluir nem
eliminar a responsabilidade do Estado na elaboração de uma política de defesa do
património cultural onde a cultura imaterial se insira. Este recente estímulo à
participação particular e individual é louvável, mas nunca poderá substituir o papel
do Estado enquanto garante da nossa identidade nacional. Se até hoje nada se tem feito
oficialmente de forma planeada e sistemática, e sendo este programa uma medida
positiva, isso não deve excluir a necessidade de o Governo vir a complementá-la,
posteriormente, e tão rápido quanto possível, assumindo por inteiro, finalmente, a sua
responsabilidade nesta matéria. É com isso que contamos, mesmo que não ignoremos que as
verbas agora disponibilizadas para o conjunto do programa, nesta fase inicial, sejam
escassíssimas (cem mil contos) e venha ou não, em breve, a ser aprovada na AR a
Lei-Quadro do Património Cultural.
Por último, uma breve alusão à terminologia cultura popular, que, como
se sabe, remete de imediato para a dicotomia cultura popular/cultura elitista. Porque
sabemos que o espírito que anima este programa (mesmo que muito mitigadamente) é o de
dinamizar a cultura local por intermédio do fomento da investigação, da formação e da
melhoria das infra-estruturas vocacionadas para a acção artístico-cultural, não
consideramos aquela expressão uma concepção passadista e paternalista, menorizadora das
forças laborais e do povo em geral, nem lhe atribuímos a capacidade de apenas produzir
subprodutos criativos, objectos de tipo artístico - na melhor asserção, exclusivamente
artesanais -, tal como o concebia a política do anterior regime, nomeadamente através da
FNAT e dos seus serões para trabalhadores ou das suas exposições de arte, que
compreendiam "expressões de uma poesia primitiva e simples... e até formas
pitorescamente caricaturais".
Daí que neste contexto nos pareça oportuno o desenvolvimento de uma política mais
estreita com os ministérios da Educação e da Ciência, designadamente no sentido de
propiciar condições mais favoráveis à actividade dos centros de estudos e institutos
universitários, sendo certo que nem a iniciativa particular e privada nem as autarquias,
por si só, dispõem de competência, orientação, meios técnicos e humanos passíveis
de enfrentar com êxito as imensas carências que neste âmbito o País enfrenta.
(1) Salvo a honrosa excepção de F. Lucas Pires quando deteve a pasta da Cultura e
que foi responsável pela salvaguarda dos arquivos do etnomusicólogo Michel
Giacometti, um dos maiores defensores do nosso património cultural.
Luís Marques é antropólogo