Crónica
Os próximos compassos...
I Encontro de Tocadores Tradicionais
Nisa, dias 3, 4 e 5 de Maio de 2002
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. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Foram três dias frenéticos em Nisa, cheios de músicos de várias
gerações - uns ligados a importantes grupos musicais, outros ligados às associações e
entidades que estudam e divulgam a música tradicional portuguesa. Nasceu mais de que uma
ideia e a música saíu a ganhar.
José Miguel
Foi a partir do Andanças do ano passado que, em animadas conversas, muitos se íam
confrontando com um dilema: porque é que há tanta gente nova interessada nas músicas
tradicionais e tão poucos sabem realmente interpretar o nosso repertório e os nossos
instrumentos?
Aliás, essa dúvida já assaltava muitas pessoas, levando quase
sempre a acesas lamentações por parte de muitos músicos, alguns deles com projectos
fundamentais na nossa história musical recente. A conclusão era cada vez mais a mesma:
há uma nova geração, que toca djembees, didjeridoos, darbukas, bouzukis, e tudo mais.
Tudo mais, menos: adufes, campaniças, bombos, caixas...
A verdade a partir daí constatada, foi de que não existe uma
verdade absoluta que explique isto. Mas é verdade, também, que as novas gerações
assentaram no mundo des-regulamentado dos djembees - em contraposição ao outro lado
cheio de regras: o dos adufes, das gaitas e dos bombos. Talvez seja o receio do raspanete
"isso não se toca assim" que levasse muitos a ir por outros caminhos.
Um urbano, tocador de adufe, gaita ou cavaquinho acaba por ser
detentor de um dos segredos mais bem guardados da história recente da música popular
portuguesa. Este queixa-se que ninguém quer aprender e aqueles que querem aprender
queixam-se que não há ninguém para ensinar. Entre queixas e lamentos, as tradições
populares portuguesas, associadas aos instrumentos tradicionais portugueses, foram ficando
esquecidas. Isto para não falar dos velhos tocadores, que haviam - muitas vezes -
pendurado as suas braguesas, gaitas ou campaniças, cedendo espaço ao acordeão do rancho
da aldeia, que acabava por domar a festa.
Um certo complexo cresceu e durou ao longo de vários anos. Todas
as gerações vindouras, ao pegarem num instrumento tradicional português, não só não
sabiam como é que se tocava, como também acabavam por ter receio de ofender as
gravações do Giacometti ou do Ernesto Veiga de Oliveira, na sua pureza intacta - algo
que o regime de Salazar já havia profanado e ridicularizado com alguns ranchos
folclóricos, uniformizados estetica e musicalmente com as cores do regime.
Eis então que as percussões portuguesas ganharam uma adesão
juvenil nunca antes vista, por mão de iniciativas como os Tocá Rufar - um projecto que
também inspirou outras formações de caixas populares, bombos e timbalões. Na nossa
história recente, surgiu também um especial interesse pela gaita de foles, que acaba por
iniciar o levantamento deste cerco da inacessibilidade aos músicos e aos instrumentos
portugueses. Neste caso, antes de se constituirem associações especificamente dedicadas
às gaitas, já alguns tinham ido à vizinha Galiza buscar os ensinamentos essenciais para
re-começar.
Só que, os galegos ou os franceses não tocam braguesas,
campaniças ou adufes; não têm canto polifónico como nós; nem sequer tocam bombos ou
caixas como nós fazemos. Em suma, não podemos re-aprender com eles a tocar todas estas
coisas. Muito provavelmente, temos de aprender sozinhos tudo o que não sabemos sobre a
nossa gaita transmontana. Aprender muitas coisas que as gravações antigas e as
partituras só conseguem contar parcialmente.
É aqui que surge a ideia de juntar os músicos tradicinais das
aldeias, os músicos tradicionais das cidades, os investigadores e os construtores de
instrumentos. Velhos e novos, profissionais e amadores, na expectativa de transmitir e de
receber aquilo que se perdeu no tempo: a transmissão oral de conhecimentos - a forma
ancestral de transmissão, de geração em geração, dos saberes sobre os instrumentos,
repertórios e formas de os interpretar.
A ideia de um encontro de tocadores foi, assim, ganhando forma e
reunindo à sua volta vários valores outrora dispersos, todos eles resultantes de
valências criadas por entidades culturais que já vinham a cooperar entre si
pontualmente, ou até nem por isso.
Uns são especializados em instrumentos musicais específicos,
outros nas danças tradicionais, outros na comunicação, outros no desenvolvimento
regional integrado, outros ainda na promoção e produção cultural. Associações
também dispersas geograficamente pelo país (Castro Verde, Évora, Lisboa, Águeda,
Castelo de Vide) que acabam por gerir uma boa parte das operações de preparação do
evento a partir de um fórum na Internet, por e-mail e por telefone.
Muitos e importantes passos foram, então, dados neste encontro.
Desde da realização de uma mostra de construtores de instrumentos, instalada num espaço
onde era também possível assistir a vários filmes de recolhas (oriundos do Museu de
Etnologia); bem como ter acesso a algumas relíquias discográficas e outras recentemente
editadas.
Afinal de contas, este primeiro Encontro de Tocadores Tradicionais
atingiu plenamente os objectivos para que se propunha: reunir velhos e novos tocadores,
juntar projectos artísticos e projectos de investigação, promotores locais e
associações culturais; e com isso criar uma plataforma de partilha de conhecimento; ou
se quisermos uma dinâmica que permita criar essa plataforma.
Por isso mesmo, não tenhamos ilusões. Há muito por fazer. A
cultura popular portuguesa, neste caso a interpretação da música tradicional, precisa
de uma escola - de ensino de instrumentos, de ensino de construção, de investigação e
de recuperação deste legado. É necessário reunir projectos associativos às
iniciativas científicas, de investigação, que permitam interpretar aquilo que foi e
ainda é recolhido por esse país fora.
Em todo o caso, é unânime - entre todos - de que se fez
história, durante o fim de semana de 3, 4 e 5 de Maio de 2002. Deram-se ouvidos aos
primeiros compassos de uma história musical, que pode vir a colocar a música tradicional
portuguesa numa nova era, nas mãos das pessoas que lhe garanta um futuro: artístico,
científico e, sobretudo, lúdico.