Os Amigos, então. São eles, mais do que a própria guitarra que tanto venera,
aquilo que acima de tudo importa no universo de Carlos Paredes. À volta da música surge
a conversa, sempre em busca de um superior conhecimento do mundo. Para Mestre Paredes, as
coisas são tão simples como respirar: «As pessoas gostam de me ouvir tocar guitarra, a
coisa agrada-lhes e eles aderem. Não há mais nada.» (Público, 20.3.90).
É, pois, normal que Paredes se espante, com as emoções que ele mesmo provoca
junto de quem o ouve: «Já me tem sucedido fazer as pessoas chorar enquanto eu toco... E
eu não compreendia isto, mas depois percebi que é a sonoridade da guitarra, mais do que
a música que se toca ou como se toca, que emociona as pessoas.»
A guitarra, as pessoas, a vida - eis aquilo que verdadeiramente conta para
Carlos Paredes. Mas quem é, afinal, este homem tão humanamente humano? Quem é este
Paredes, para lá da guitarra de que os seus dedos ágeis conhecem os mais íntimos
recantos? Não é questão a que possa responder-se facilmente, tanto pelo seu permanente
acanhamento em referir-se a si próprio, como pela lealdade dos que lhe estão ou
estiveram mais próximos e que preferem guardar para si os momentos partilhados com o
músico.
São lendárias as histórias da sua distracção congénita, da sua
simplicidade comovente, episódios de alegrias, emoções e ternuras contados sem maldade
em serões de amigos comuns. E é aí que devem continuar, longe dos apetites mundanos que
acabariam por transformar estes momentos únicos em banalidades de um qualquer
anedotário. Vamos, pois, aos factos que são do conhecimento mais ou menos geral.
Nascido em Coimbra a 16 de Fevereiro de 1925, respectivamente filho e neto de
Artur e Gonçalo Paredes, Carlos aprendeu a tocar guitarra portuguesa quando tinha apenas
cinco anos. Ainda tentaram ensinar-lhe piano e violino, mas «Por preguiça», não se
ajeitou aos instrumentos. «A minha mãe, coitadita, arranjou-me duas professoras», conta
o músico. «Eram senhoras muito cultas, a quem devo a cultura musical que tenho.
Passávamos horas a conversar e uma delas murmurava: "Não sei o que hei-de dizer aos
seus pais". Mas aprendi muito com elas.» (Jornal de Letras, 17.3.92).
Aos nove anos muda-se com a família para Lisboa, onde conclui a instrução
primária, no jardim Escola João de Deus. Passa pelo Liceu Passos Manuel antes de
ingressar no Instituto Superior Técnico, onde não chega a licenciado. Casa e tem filhos.
E nunca pára de tocar a sua guitarra.
A música é, já nessa altura, uma paixão a que Carlos Paredes se entrega com
intensidade. Mas só em 1957, com 32 anos, dá pela primeira vez notícias em disco, num
EP gravado para a Alvorada. Três anos depois, a sua música é utilizada por Cândido da
Costa Pinto na curta-metragem "Rendas de Metais Preciosos", mas será em 1962
que, com a banda sonora encomendada por Paulo Rocha, gravará a primeira das suas
composições mais geniais "Verdes Anos", apenas, tal como o filme.
O cinema, de resto, é uma presença constante na obra de Paredes, e ao longo da
década de 60 a sua música ilustrou filmes de Pierre Kast e Jacques Doniol-Valcroze,
Jorge Brun do Canto, Manoel de Oliveira, António de Macedo, José Fonseca e Costa, Manuel
Guimarães e Augusto Cabrita. Para teatro, destaca-se o seu trabalho para a peça "O
Avançado Centro Morreu ao Amanhecer", de Cuzzani, levada à cena em 1971 pelo Grupo
de Campolide - por cuja selecção musical ficou responsável durante mais meia dúzia de
anos.
Quanto a discos publicados, é o que se sabe. Perfeccionista sempre
insatisfeito, Paredes fez rarear as edições das suas músicas, que actualmente se
resumem a três CDs de originais, dois em colaboração (com António Victorino d'Almeida
e Charlie Haden), uma gravação ao vivo em Frankfurt, e algumas colectâneas de
raridades.
O primeiro álbum (que era como então se chamava aos discos de 33 rotações
por minuto), publicou-o Paredes em 1967, na Valentim de Carvalho: chama-se "Guitarra
Portuguesa" e foi gravado em Paço d'Arcos, com Fernando Alvim como acompanhante à
viola e Hugo Ribeiro na técnica. Alain Oulman, o francês de alma lusa que escreveu para
Amália músicas como "Gaivota", assinava o texto de apresentação deste jovem
músico que se estreava em disco grande aos 42 anos.
"Movimento Perpétuo", editado em finais de 1971, confirmou em
definitivo o carácter único da sua música. Depois veio Abril. Deixando para trás
projectos que ficariam semi-gravados (e que só muito mais tarde, em 1996, surgiriam na
colecção de inéditos "Na Corrente"), Paredes entregou-se de corpo e alma à
revolução emergente, percorreu o país de ponta a ponta, com a mesma generosidade com
que, no tempo da ditadura, espalhava a sua arte por colectividades e pequenos grupos dos
tais Amigos que se juntavam para ouvir estas músicas mágicas que anunciavam um mundo
melhor. E, assim, só em 1988 voltaria a publicar um trabalho de estúdio, "Espelho
de Sons".
Durante quase todo este tempo foi, também, funcionário do Ministério da
Saúde, que faria dele arquivador de radiografias no Hospital de São José - até que,
já nos anos 80, um ministro mais atento o promoveu, à sua revelia, a um cargo onde não
tinha que fazer rigorosamente nada (um dos tais imprevistos admiráveis que um dia alguém
contará). E só então lhe sobrou o tempo todo para a dedicação plena à guitarra, a
que Paredes atribui todas as virtudes da sua arte: "A própria guitarra, o próprio
tipo de sonoridade da guitarra é que emociona", garante.
A modéstia de Carlos Paredes é a única coisa que pode comparar-se em
grandeza, com o seu enorme talento. Não se pense, porém, que esta atitude tem o quer que
seja de auto-apoucamento, de falta de confiança e/ou de consciência do valor próprio da
sua arte. Pelo contrário: «A música que eu faço tem normalmente estrutura da pequena
canção, da cançoneta. Por isso é que eu costumo dizer sou um compositor de pequena
música. É um termo que nunca utilizo no sentido pejorativo, mas que foi necessário, no
critério de alguns musicólogos, distinguir um determinado tipo de música, a que também
se chama música ligeira de um outro, a música clássica. Esta seria a "grande
música" e, como música ligeira me parece um termo muito vago, então optei por lhe
chamar "pequena música"." Mas atenção: «Quando eu falo de pequena
música, pretendo apenas qualificar música que, estruturalmente, é simples e que pode
até ser, do ponto de vista estético pouco apreciada, mas que não deixa de ser música.
Se eu toco para várias pessoas que me ouvem com atenção, é porque lhes estou a dar
prazer. E mesmo que esteticamente seja uma música menor, em termos de qualidade, não
tenho que me envergonhar dela, não acha?» (Se7e, 5.10.83).
Este enorme pudor que colocou Paredes no pedestal mais alto da dignidade humana
reflecte, apenas, a extrema exigência de rigor que tem para consigo próprio e que, como
notou o jornalista António Costa Santos, "o leva a cada passo à mais feroz
autocrítica e, por conseguinte, a considerar que a opinião do interlocutor, só é
válida e respeitável, como poderá, a priori, ser mais adaptada à realidade do que a
sua". Isto porque Paredes "acredita que, se os outros afirmam algo, é porque
como ele faz, dissecaram em conversa prévia com os seus botões toda a que antes de
botarem sentença. E como, para Paredes, seremos sempre mais do que ele capazes de, após
reflectir, ver correctamente a essência das coisas, temos razão e ele vai pensar nas
novas perspectivas que lhe abrimos, no que 'aprendeu' connosco" (Expresso, 21.3.92).
Carlos Paredes é, pois, daquele género raro de seres que praticam as
relações humanas segundo uma ideia ideal que passa por uma ilimitada vontade de
compreender, de olhar as pessoas dentro dos olhos, conhecê-las, gostar delas. E de
comunicar com elas na sua globalidade humana de virtudes e de defeitos, sendo que há
defeitos que podem ser qualidades e virtudes que podem afinal não ser assim tão
virtuosas, tudo dependendo da perspectiva, do momento, daquela razão tão última e tão
íntima que às vezes nem o próprio consegue definir.
"Explica-me os morangos", pediu uma vez jacques Brel ao seu amigo
Olivier Todd. Brel, sonhador inveterado de um plat pays em tantas coisas parecido com o
nosso, sabia que os morangos só se podem descrever e saborear. Com a música de Paredes
passa-se algo de semelhante: não se explica, apenas se ouve e se sente.
Paredes é, por natureza, um homem que não se cansa de aprender, daqueles para
quem a dúvida é sempre mais criativa do que a certeza final. Por isso nunca toca duas
vezes uma música exactamente da mesma maneira. Por isso, também, só a muito poucos
concedeu o privilégio de participarem intimamente na sua arte: Fernando Alvim e Luísa
Maria Amaro, antes de todos; Victorino d'Almeida e Charlie Haden, quebrando as barreiras
entre linguagens musicais aparentemente distintas, e poucos mais.
Do mesmo modo, Paredes consegue ser o maior mestre vivo da guitarra portuguesa
sem nunca ter tido a sua ao serviço do fado dito tradicional. Porque, explica o músico,
«o fado aconteceu em Portugal por razões bem concretas, foi uma expressão autêntica de
um certo tipo de lirismo», mas «foi empobrecido por força das pressões sociais que
estavam interessadas na sua adulteração e foi prejudicado na sua autenticidade por quem
estava interessado em transformá-lo em objecto mistificador».
Por discrição e porque Paredes só se sente bem no meio dos amigos,
encontramo-lo mais depressa - ainda que também raramente - em discos de cantores como
Adriano Correia de Oliveira ("Que Nunca Mais", com textos de Manuel da Fonseca e
arranjos de Fausto) e Carlos do Carmo "Um Homem no País", com letras de José
Carlos Ary dos Santos), ao lado de poetas como Manuel Alegre ("É Preciso Um
País") ou incentivando e procurando entender as experiências sonoras de músicos
mais jovens. E que bem que sabe ouvir o Mestre assumindo discreta mas apaixonadamente a
condição de puro participante em trabalho alheio, como sucede nos discos citados do
Adriano e do Charmoso...
Para Carlos Paredes, a música é, antes de tudo, um acto de amor: «Para se
fazer música com prazer tem muita importância a amizade entre as pessoas. Não se pode
fazer música friamente e com cálculo, profissionalmente, no mau sentido da palavra, a
receber x à hora. Não pode ser assim.» (Se7e, 16.3.88). Por isso, como se sente melhor
a tocar é «em família, na intimidade. Acompanhando o tocar de uma conversa em que
falamos de nós, dos amigos, dos acontecimentos da vida diária.»
Num tempo dominado pela crescente novagentização da sociedade, as palavras que
Carlos Paredes partilha com o mundo, nas entrevistas que já deu, são a prova de que
existe um país muito parecido com o nosso e que também se chama Portugal, mas onde as
coisas fazem outro sentido. Ouçamo-lo quando lhe pedem para definir a sua arte: "A
música que faço é um produto das circunstâncias imediatas do tempo em que eu vivo, e
passará a ser encarada de outra forma quando essas circunstâncias desaparecerem. É urna
coisa que, se perdurar graças aos discos, ficará apenas com o valor de documento, como
acontece com toda a pequena música, desde os Beatles ao Manuel Freire. E já ficarei
muito orgulhoso se, daqui a muitos anos, puder ser entendido como um compositor que se
integrava bem nos acontecimentos desta época ... » (Se7e, 5.10.83).
Carlos Paredes é isto. Sereno, frontal, humilde. Mas sempre seguro das
convicções - mesmo se as convicções não são mais do que as incertezas em que
acreditamos. Atento aos pormenores de tudo o que acontece em seu redor, Paredes não
deixou que as transformações do mundo lhe passassem ao lado. À semelhança de muitos
outros que, como ele, dedicaram toda a vida a lutar "para que ninguém mais tivesse
que lutar", como diria Vinícius, também Paredes sentiu o peso de algum desencanto.
"O ideal não morreu e verifica-se que há determinadas coisas que só um sistema
avançado pode resolver. Mas não pode ser de uma forma mecânica; é preciso ver, meditar
e sobretudo ter um grande respeito pelos outros" (Expresso, 21.3.92)
Um grande respeito pelos outros. Eis o que faltou às utopias, mas nunca deixou
de estar presente na vida, na música e nos gestos de Paredes. É nesse mundo de Amigos
que se respeitam e se amam, que vive Carlos Paredes; é desse mundo, onde a Verdade e o
Prazer caminham de mãos dadas, que nos ilumina com a grandeza simples dos sons que só
ele sabe inventar.
Um génio? Ele diz que não, que é apenas um homem igual aos outros, capaz de
amar e de sofrer, de rir e de chorar. «Geniais são as pessoas que respeitamos muito
Génio era Mozart.» Génio, génio grande e generoso, é este Carlos Paredes, digo agora
eu. E o futuro que me desminta, se for capaz. Lisboa, Julho
de 1998