Dossier Sons da Terrra
Cantigas da Segada
Caçarelhos - VimiosoRomanceiro, tomo a dizer não o coligimos nunca; mas não na tradição
oral do povo (..) anda uma grande riqueza que ainda se não tratou de ajuntar e apurar
como ela merece e como tanto precisamos. Almeida
Garrett, in Introdução ao Romanceiro, Vol. II, 1851
Repetiam-se ao calor tórrido do sol as canções das segadas, essas
canções de notas arrevessadas amoldadas a rimances seculares. Antônio Maria Mourinho, in Cancioneiro Tradicional
Mirandês de Serrano Baptista, 1987.
Vivemos num tempo em contínua e rápida transformação. A tecnologia já chegou ao mundo
rural, impôs-se ao braço do homem e provocou profundas alterações no seu "modus
vivendi". A debulhadora, por exemplo, substituiu as foices milenárias e com elas as
composições de carácter estético, poético e "linguístico-discursivo", mais
conhecidas por cantigas da segada, rimances ou romances tradicionais.
Transmitidas oralmente, de geração em geração, através dos séculos desde a Alta
Idade Média, serviram sempre para lenir e alegrar um trabalho árduo, como confessa,
radiante, D. Adélia Garcia: "Era uma alegria. Trabalhávamos com graça, divertidos.
Passávamos os dias a cantar. Andávamos sempre com aquela "giga-joga" na boca,
não havia lugar para tristezas."
Fazendo parte do imaginário das pessoas, eram iniciadas pelo
"maioral" (chefe da ..camarada", ou seja, do grupo de ceifeiros), cantadas
em grupo, em grandes toadas, em plena "stalha" ou "sucada", e com mais
ritmo e fulgor pelo fim da tarde. Sinal de afrouxamento do sol, de alívio pelo trabalho
estar a terminar, de alegria pela geira ganha ou retempero de forças para a jornada
seguinte?
Agradáveis ao ouvido, melódicas, ritmadas e com prelúdios de musicalidade medieval,
reportam-nos, como diz J. David Pinto-Correia, "aos cantares de gesta, a histórias
noticiosas elaboradas por jograis ou a intrigas provenientes do fundo baladístico
europeu, podendo, pois, ter conteúdo do foro épico, ou épico-lírico; principalmente
novelescosentimental, catártico-escon'uratório (Dei adinha), trágico-moralista,
noticioso-histórico, melancolicamente lírica, lírico-progressista (Gerinaldo),
lírico-religioso-moralista (O Lavrador da Arada), religioso (Na Manhã de São João) ou
épico-maravilhoso."
Cientes da importância que representam para o estudo e enriquecimento do nosso
cancioneiro/romanceiro e das ameaças que sofrem, seguindo os conselhos de Garrett, foi
nossa intenção fazer uma recolha e registo, de ordem temática, o mais fidedignos
possível.
Fizemo-lo numa região periférica, diferenciada, conservadora e baluarte da
cultura popular tradicional, em pleno coração do Planalto Mirandês, no Concelho de
Vimioso, na vetusta, "guapa" e acolhedora povoação de Caçarelhos, onde
outrora se falou mirandês e, ainda hoje, se conserva um tesouro cultural, puro e
cristalino, na memória lúcida, brilhante e expressiva de pessoas como as senhoras
Adélia Garcia e Maria Falcão e o senhor José Garcia, autênticas enciclopédias e
bibliotecas vivas e lídimos representantes da alma de um povo, maduro como a seara de
Julho.
A apresentação e transcrição dos romances seguem a ordem cronológica ritual própria
registando-se, em itálico, as alternâncias de código e interferências linguísticas
acentuadamente mirandesas. Nós cantamos como sabemos, "meio atrabessado",
comentam as nossas informantes.
Com este trabalho, queremos render a nossa homenagem a todos quantos se dedicaram ao
estudo deste tema e, em especial, à memória dos distintos investigadores Almeida Garrett
e Antônio Maria Mourinho, pioneiros no registo sistemático dos romances,
respectivamente, a nível nacional e local.
Que as CANTIGAS DA SEGADA e a sua mensagem passem aos nossos filhos e continuem a
fascinar-nos!... Domingos Raposo