Dossier Sons da Terrra
Clementina Rosa Afonso
Modas, Lhaços e RimancesRaiç e Tradiçon
Na demanda dos sons da terra, rumámos para onde a paisagem entra nos olhos e não sai
mais (Miguel Torga) e as pessoas se tornam amigas e não mais se esquecem. Mirandeses
d'ias arribas, gente que se confunde com a própria natureza, numa simbiose tão profunda
como impenetrável, da qual emerge uma cultura de seculares origens que é seiva
intemporal de uma identidade resistente que a memória colectiva oralmente transmitiu ao
longo dos tempos.
A Senhora Clementina Rosa Afonso, uma mirandesa d'las arribas, com 68 anos de
surpreendente vitalidade e desenvoltura, é um verdadeiro cancioneiro vivo, capaz de
suspender a marcha inexorável do tempo quando a sua prodigiosa memória nos revela
preciosos tesouros da mais autêntica e expressiva cultura popular mirandesa.
Freixenosa é uma aldeia de arraigadas tradições musicais e festivas, onde pontificou o
tão célebre como mítico gaiteiro Tio Pepe, bisavô de Ciementina Rosa Afonso. Em casa
de seus pais, a Senhora Ciementina sempre desfrutou de um ambiente de grande alegria,
tendo aprendido com sua mãe todas as cantigas do Tio Pepe e demais repertório
tradicionalmente interpretado, cantado e bailado: cantigas e modas de baile, contos e
rimances, histórias e lendas, anedotas e adivinhas, loas e orações.
Hoje tudo é diferente dos tempos da sua adolescência e juventude, recordando com um
certo brilhozinho nos olhos as festas na aldeia, com canções e bailes, as fogueiras
comunitárias e os fiadouros, as noites passadas em frente das lareiras desfiando
histórias e rimances, as festas natalícias com seus cantos e orações... Precisamente
todo um vasto repertório que Ciementina Rosa Afonso nos transmitiu de um só fôlego.
Por razões de natureza programática foram deixadas em arquivo as recolhas de
contos e de histórias, de anedotas e de adivinhas, de loas e de orações, tendo-se
optado por "apenas" se incluir uma parte muito significativa dos espécimes
musicais da tradição oral mirandesa: cantos e modas, rimances e lhaços de pauliteiros.
De realçar a inclusão de vários espécimes nunca antes recolhidos elou gravados que
tivemos o grato privilégio de registar durante este encontro com a alma mirandesa
profunda de Ciementina Rosa Afonso, uma mirandesa dlas arribas que é uma força telúrica
da natureza verdadeiramente única e singular.
Modas
Abundam no cancioneiro mirandês as modas e os cantos interpretados durante os fiadouros,
as mondas, as segadas, as tosquias e demais tarefas cíclicas das comunidades rurais,
constituindo um verdadeiro tesouro de inestimável valor cultural. São cantos e modas que
animavam os bailes nos terreiros e os longos serões mirandeses, amenizando a vida das
gentes de uma terra que se habituou a ter três meses de inferno e nove meses de inverno.
Ciementina Rosa Afonso apresenta um notável repertório destas modas e destes cantos
mirandeses, com destaque para espécimes inéditos, como Salsa Berde, Ainita, Coquelhada
Marralheira, Las Alparcatas e Que Festa Nós Faremos. São cantigas bem expressivas da
tradição oral, algumas das quais exibindo traços bem expressivos das seculares
relações das gentes mirandeses com as áreas leoneso-zamoranas. E se esse ancestral
diálogo intercultural surge bem claro numa composição como Las Alparcatas ou Coquelhada
Marralheira (coquelhada é nome de pássaro que esvoaça com irrequietude na área do
planalto mirandês), está do mesmo modo manifestamente testemunhado em Ainita (nome dado
à calabaça, cabaça cheia de vinho que passa de mão em mão para aconchegar o estômago
e animar o espírito durante os momentos de convívio nos serões mirandeses).
No que se refere a modas de baile, não podemos deixar de referendar a inclusão de
espécimes relativamente aos quais se impoem algumas notas explicativas: Riu Piu Piu, uma
dança com coreografia do tipo repasseado, bailado de terreiro eminentemente rural cujas
origens poderão ser anteriores ao século XVII, mas também canção mirandesa com a
particularidade de a respectiva letra não ser mirandesa mas sendo habitualmente cantada
em mirandês; Maganão, uma dança do tipo paralelo ou de coluna, com o ritmo de 214 bem
característico da área leoneso-mirandesa, também recolhida pelo Padre Firmino Martins
em terras de Vinhais; Deolinda, uma moda de baile também designada Biolinda,
frequentemente interpretada durante os peditórios para as festas dos patronos, mas
também cantada duran ' te as ceifas e as segadas e, sobretudo, nos fiadouros.
Destaque muito especial para duas toadas infantis: Bai Pedro Bai, uma cega-rega sob a
forma de moda bailada a dois que a Senhora Ciementina Rosa Afonso diz ter cantado e
bailado nos terreiros, com um ritmo que, de algum modo sugere o toque dos sinos
"contra" as trovoadas; e Ro Ro, uma toada de berceuse sob a qual se disfarça
uma canção de adultério, como resulta da análise da própria letra: chegado o amante,
a mulher adúltera informa-o que o pai do filho se encontra em casa e deitado na cama,
dirigindo-se para tal efeito ao filho e invectivando o amante, que parece não a perceber
para, desaparecer - Cabeça de burro/ bocê num mantende?/ el pai de l ninho na cama
'stende...
Canções e modas que se interpretavam quer durante os fiadouros quer no decurso
das mais variadas tarefas agrícolas, assim como nos bailes e nos serões, eram também
Salsa Berde (precioso espécime inédito), Cantiga de Torregamones (do mesmo modo nunca
antes gravada), Helena (canção que já foi romance), Manolo Mio (composição da qual
recolhemos duas variantes), Que Festa Nós Faremos (tanto quanto nos é dado saber um tema
inédito), Cantiga da Segada (muito popular em toda a região) e Fiz,, La Cama na Moreira
(espécime do qual Antônio Mourinho recolheu variante em 1953, em Duas Igrejas, dando-lhe
o título de Querida Júlia).
Rimances
Constituem acervo de enorme valor cultural os velhos rimances que a memória dos mais
idosos teima em preservar. Com o decorrer dos tempos e por força das alterações da vida
das gentes das comunidades rurais mirandesas, muitos destes rimances foram perdendo o seu
carácter narrativo original, transformando-se em quase-cantigas (o que tem igualmente
muito a ver com a perda da respectiva funcionalidade expressiva e consequente processo de
lenta e irreversível perda de memória). Helena, por exemplo, que foi um romance muito
popular na zona mirandesa das arribas (ao que tudo indica constituindo uma variante/
versão da castelhana temática de Santa Iria), encontrando-se hoje na @nemória que nos
foi transmitida pela Senhora Ciementina Rosa Afonso reduzida a uma típica canção.
Noutros espécimes, como é o caso de Chin Glin, na origem um romance vilanesco (para
usarmos a classificação de Menendez Pidal), de razoável extensão estrófica, evidencia
fase terminal de ruptura com os cânones tradicionais do romance.
Apraz-nos registar a inclusão de um espécime inédito, Calles de S. Francisco, um
singular rimance de cativos. Acresce que o espécime aqui designado de Dona Anja constitui
uma variante de Dona Ana ou Dona Ancra, rimance do qual se dispõe já de preciosas
recolhas e registos, nomeadamente os que foram efectuados por Michei Giacometti (em
lfanes) e Antônio Mourinho (erh Sendim e S. Martinho de Angueira).
Uma referência para o romance Isabel, que a Senhora Ciementina Rosa Afonso afirma ter
aprendido de sua mãe e que fazia parte do repertório do Tio Pepe. Além dos romances já
referidos, incluíram-se também interpretações de D. Femando e D. Jorge; ambos
espécimes amplamente conhecidos em quase todo o território português.
Lhaços
Uma das mais expressivas manifestações da música tradicional e popular mirandesa são,
sem dúvida, os lhaços, designação local para as danças dos pauliteiros, os quais
apresentam considerável variedade melódica e temática.
A Senhora Clementina Rosa Afonso revela possuir um conhecimento muito vasto (mas por vezes
algo fragmentário) deste significativo repertório de lhaços, tendo sido por nós
seleccionados oito espécimes: de motivo religioso (Senhor Mio e Patombitas), de motivo
amoroso (La Berde), de motivo agrícola (Padre Antônio), de motivo
descritivo-profissional (Ofícios), de motivo maidicente (Balentina) e de motivo banal e
vulgar (Carrascal de Bobadilha e Bilhano de Zamora). De registar as pequenas variantes que
apresentam as interpretações da Senhora Ciementina relativamente a outras recolhas
efectuadas.
Destaque obrigatório para dois lhaços atribuídos ao Tio Pepe, Balentina e Bilhano de
Zamora. Aquele foi espécime composto para uma mulher de Freixenosa, de seu nome Valentina
ou Balentina, que andava dizendo que não daria aos dançadores a esmola para a festa de
Santa Bárbara. O último mereceu de Antonio Mourinho esciarecedor comentário: Este
lhaço apresenta uma letra que é um cerrado ataque pessoal a uma mulher de Freixiosa.
Esta letra foi criada por um gaiteiro muito célebre que viveu naquela povoação, Tiu
Pepe, que como profissional da gaita de fole é elogiado por toda a gente que o conheceu,
e eu ainda o conheci. De espírito vivo e repentista, percorreu os três concelhos de
Miranda, Mogadouro e Vimioso a tocar nas festas de primavera, de fim de verão e de
inverno e porque a vizinha, além de ser brigona era ladra e fuitava-lhe os figos,
compôs-lhe um lhaço... Mário Correia