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12.A Azeitona Já Está Preta 13.Conversa
14.Corrido 15.Conversa 16.Rio Douro
17.Conversa
18.Marcha de Chaves 19.Conversa 20.Xona

Todos os temas são tradicionais/populares, excepto *(Maria Paiva/Carios Pereira)
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Dossier Sons da Terrra
Ezequiel dos Santos
Gaiteiro de Vale Martinho - Mirandela

O gaiteiro de Vale Martinho, Ezequiei dos Santos, faz parte de toda uma radição regional e, como tal, não pode nem deve ser considerado, em termos etnomusicológicos, como expressão de tradições locais e limitadas. Assim, é no contexto transmontano que deve ser enquadrada a sua arte de soprar na gaita de foles, instrumento que constitui um prolongamento essencial da sua vida. Com efeito, Ezequiel dos Santos nasceu e vive numa região que, ao longo dos tempos, foi um verdadeiro cruzamento intercultural. Antes da conquista romana registou-se a existência de uma zona bastante ampla e povoada por distintos povos Zoelas, Vacceos, Vetones, Lusitanos e Galaicos -, delimitada a ocidente pelo Rio Tuela, a oriente pelo Rio Esia, a sul pelos rios Sabor, Douro e Tormes e, a norte, pelos contrafortes da Serra da Cabreira. No entanto, durante e após a conquista romana, tais características de multidentidade regional permaneceram na sua essência expressiva, modificando-se e evoluindo de acordo com as influências dos tempos. De tal modo que estão hoje definitivamente postas de lado as abordagens mais ou menos localizadas sem atenderem às chamadas áreas culturais, de difícil delimitação, é certo, mas garantes indispensáveis da desejável libertação de "ataduras chauvinistas e localistas", como referiu o músico e etnomusicólogo Alberto Jambrina Leal. Neste sentido, o testemunho da arte do gaiteiro de Vale Martinho, aldeia de terras de Mirandela, só pode ser correctamente entendido no contexto da tradição musical transmontana.

Na demanda do gaíteíro...
O homem desviou por momentos os olhos da chávena que recebia o café antes encomendado. E em geito de resposta comentou: Gaiteíros, por aqui? Olhe, isso era antigamente. Agora já não há! Olhe: que eu saiba só em Vale Martinho é que ainda há lá um... Do grupo que à entrada do estabelecimento jogava às cartas chegou a confirmação: É sim senhor, em Vale Martinho há um, já velhote... Para logo mais sentenciar, enxotando as moscas que teimavam em assediar os bordos do seu copo de vinho tinto: Gaíteíros, gaiteiros, isso é mais lá para os lados de Miranda...

A novidade não existia: tal informação fora-nos fornecido tempos antes pelos serviços culturais da Câmara Municipal de Mirandela. Os dados foram claros: Na área deste município regista-se a existência de um único tocador de gaitas de foles: Ezequíel dos Santos, residente em Vale Martínho. Mas o homem do café insistiu: Mas olhe que é pena! As festas dantes tinham outra animação. E começavam muito cedo, com as alvoradas.

Despedidas feitas, o regresso à estrada. O Rio Tua - ferida sangrenta na paisagem grave e sóbria do planalto, como escreveu Jaime Cortesão - ficou para trás, bordejando então esporadicamente a estrada o Tuela, seu afluente, também fresco e docente numa paisagem de campos ceifados cor de ouro. Terra quente, abraçada por um imenso céu azul desabando abrasador sobre a superfície semiárida onde as oliveiras e as amendoeiras repartem com urzes, estevas e giestas a água e o húmus. Os indescritíveis aromas das flores selvagens que bordejam a estrada estreita - serpente negra de alcatrão ameaçando derreter-se na distância - inebriam os sentidos, povoando de ruralidade horizontes despovoados. Que, finalmente, cedem perante um aglomerado de pedras submetidas a velhas formas de casas: Vale Martinho. Nome de aldeia. Ainda.

Todos se conhecem. Naturalmente. Mas o gaiteiro, quem não havia de saber onde mora? Só mesmo um estranho, chegando numa altura em que a vida se suspendia em tempos de dolência, numa tarde quente e dormente no largo da aldeia. Sob a varanda de pedra da casa do gaiteiro, sentados em bancos de granito tosco, alguns homens e mulheres conversavam com a tranquilidade de quem saboreia a vida em cada naco de história.

O gaíteíro de Vale Martinho
Ezequiei dos Santos foi registado aos 17 de Outubro de 1927. Desconhece como muitos dos que por aqui nasceram a data exacta do seu nascimento. Mas garante que foi ali, em Vale Martinho.
Septuagenário de boa fibra transmontana, continua a dedicar-se às tarefas agrícolas, na companhia de sua mulher, alardeando mais fôlego que um "matcho'. Porque se assim não fosse - perguntou - como é que podia ser gàiteíro?

Autodidacta na aprendizagem da gaita de foles, Ezequiei dos Santos evoca, a cada passo, a figura - mítica e venerada! - de um tal José Benedito, gaiteiro que foi em Vale dos Prados, aldeia não muito distante de Vale Martinho. Falecido há mais de trinta anos, José Benedito foi o melhor gaiteiro que eu conheci em toda a minha vida e foi com ele que eu aprendi tudo o que sei. Vendo-o tocar, como mandavam as regras, porque gaiteiro que se preze não ensina aos outros os segredos da sua arte.

Ezequiei dos Santos nunca engeitou desafios ou despiques e orgulha-se de já ter calado muitos Locadores de clarinete - um "inimigo" figadal da gaita de foles! - soprando no seu velho instrumento. Esta - que exibiu no decurso do nosso primeiro encontro - era uma espécie de híbrida traça galega, muito estragado e com abundantes quantidades de adesivo castanho a ligar os vários componentes do bordão: Já tocou muito...

É muito velhinha mas olhe que ainda não vi melhor por aí. Mas por via do cansaço lá foi comprando uma nova, em Vigo, com um fole que não perde ar.

Actualmente, Ezequiei dos Santos quase só faz as festas das aldeias mais pequenas da região ou com menos posses. São toques de alvorada e de procissão, assim como repertório. de baile e modas: Quando não têm dinheiro para 'justar' bandas de música eles vêm 'justar" comigo as gaitadas...

A formação instrumental varia de acordo com os fundos recolhidos e disponíveis; na sua máxima força pode integrar dois bombos, duas caixas de guerra e pratos. Tudo instrumental de sua pertença, como não podia deixar de ser para poder controlar o grupo. Mas os Locadores adrede contratados esgotam-lhe a paciência durante os ensaios e durante a "função".

O trabalho já não abunda e depois do verão as festas escasseiam: No Natal e nos Reis é que aparece alguma coisa para fazer. Nos Reis eu vou muitas vezes tocar a Vale Salgueiro: toco no dia 5, por volta das cinco da tarde e no dia a seguir faço as alvoradas, a missa e vou na procissão de Santo Estêvão.

Com percussão reduzida porque a função é religiosa. Nada de arraial. Em princípios de Setembro de 1996, Ezequiel dos Santos contava ir fazer de novo a festa em Vilarinho das Azenhas, terra situada lá para os lados do Cachão: Aquilo é das 8 da manhã às 6 da tarde. Mas só vou se me puserem carro à porta. Como é que eu posso levar tudo para lá? Não levou. Acabaram por ser os de Sanfins do Douro a fazer a festa.

Em tempo de gravação
Sabe, costumamos ensaiar a música completa aqui na adega. Mas isto dá muita canseira. São todos muito indísciplinados. E olhe que já ensinei muitos!... Mas depois não ligam mais e abandonam a função. Garante que "justa" com os mordomos na base dos quinze contos dia para cada homem - sua-se muito.... confessa como quem se justifica.

Homem de muitos suores nos campos duros e pedregosos de Vale Martinho, Ezequiei dos Santos fala com toda a desenvoltura, como todo o gaiteiro que se preza. Homem vivido e de histórias sempre artilhadás, orgulha-se de nas suas andanças africanas ter uma vez atrasado um voo porque começou a tocar gaita de foles e toda a gente o ficou a ouvir. Mas também não se esquece do verdadeiro pânico de um organizador de uma festa em pleno País Basco, ao qual afiançou que iria tocar o "Viva Espanha", assim como a ovação que recebeu no campo do Mirandela quando este jogou contra o Boavista para a Taça de Portugal e ele se encontrava nas bancadas a tocar para animar as hostes locais.

Ezequiei dos Santos apresenta um repertório que testemunha de modo assaz expressivo a transição entre as composições mais antigas, em claras vias de extinção, e as chamadas modas mais recentes. Sem esquecer as composições de carácter religioso, dignas de toda a nossa atenção e registo. Exibindo um razoável domínio das apogiaturas, Ezequiel dos Santos não tem quaisquer conhecimentos musicais teóricos, tocando o "compasso" de ouvido (como de ouvido aprendeu com o gaiteiro de Vale de Prados, José Benedito).

A gravação decorreu em 23 de Março de 1997, dia de Ramos - na aldeia com benção de raminhos de oliveira para queimar em louvor de Santa Bárbara em tempos de trovoadas - na adega da sua residência, conforme expressa vontade do mesmo. Local de inegáveis condições acústicas - apenas com o senão de ainda se ouvirem as vozes dos aldeões sentados no largo fronteiriço à mesma, sob a varanda. A presença dos barris de vinho, por ele próprio produzido, impõe o esclarecimento:    Pode-se beber à vontade: isto é só beber e... mijar!

Ezequiei dos Santos dispõe de um numeroso conjunto de ponteiras: Destas já não sou capaz de fazer.- falta-me a vista. Tenho de as mandar vir de Espanha, porque não posso ficar maL Mas as do bordão essas continuam a ser confeccionadas por si, quer com canas que recolhe nos canaviais do Tuela, quer com hastes de sabugueiro (um bom feixe de esguias varas bem secas encontrava-se pendurado no alpendre). Para levantar a lingueta, Ezequiei dos Santos usa a vulgar linha preta de costureira, colocando, por vezes, um pouco de fita cola para evitar o seu fecho com a humidade excessiva. O extremo é tapado com cortiça.

Se na gaita antiga os problemas de afinação lhe causam indisfarçada impaciência, com a nova tudo é diferente, embora ainda se encontre em fase de adaptação. No que se refere às ponteiras, Ezequiei dos Santos mostrou-nos dois exemplares que conserva como reserva, muito antigos uma das ponteiras, feita de buxo, é coisa rija, pra nunca mais acabar. No entanto, são já claramente peças de museu (que ainda não existe!), pedaços sobreviventes de uma memória que se vai desvanecendo: Quando eu morrer isto não vai servir para ninguém. Ninguém quer mais continuar com esta tradição!... Há uma tristeza incontida nos seus olhos piscos e, mentalmente, é inevitável a associação das ponteiras gastas e da velha gaita às casas semidestruidas ou mesmo em ruina total de Vale Martinho. A marcha ínexorável dos tempos vai deixando marcas profundas na paisagem e na memória das gentes.

É sabido que o progressivo desaparecimento das condições de vida agro-pastoris das gentes transmontanas tem vindo e determinar profundas alterações na vida das comunidades rurais, também elas "acusando" de algum modo o choque/confronto da modernidade. Com o igualmente progressivo desaparecimento dos gaiteiros tradicionais desaparece todo um repertório musical arcaico de inestimável valor patrimonial. E hoje o trabalho de recolha é, sobretudo, a arte de registar o possivel para tão eventual como de todo irrelevante desespero dos puristas de laboratório. E os testemunhos do gaiteiro de Vale Martinho, de seu nome Ezequiei dos Santos, vale como documento da actual permanência de uma tradição de singular expressividade que teima em resistir ao ostracismo dos tempos. Mário Correia Voltar ao Topo

 

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