Antologia
Música Tradicional da Madeira
Violas e Canções de negros
Por João Maurício Marques
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. . . . . . . . . . .Em termos
culturais a Madeira é uma terra de muitas incoerências e paradoxos. Por um lado, a sua
sociedade sempre foi muito fechada, tradicional e conservadora (na mais pura tradição
galaico-cristã), mas pelo outro, e por via da sua posição geográfica no Atlântico,
perto da África negra e muçulmana, a caminho da América e descoberta pelos europeus,
sempre esteve de espreita ao que os outros traziam e nunca teve grandes problemas em
conviver com outras comunidades e tradições.
No entanto, este paradoxo foi muito útil. Durante 500 anos foi-se cozinhando um
pote de influências culturais, que embora dominados pela tradição ocidental europeia,
também foram sendo moldadas mediante pequenas farpas vindas de outras paragens
geográficas.
Assim é possível encontrar na Madeira versões dos mais velhos romances
carolíngios (já praticamente desaparecidos no Continente europeu) mas também
adaptações de mornas cabo-verdianas que já fazem parte do quotidiano, para além de
lengas-lengas e lendas misteriosas sobre africanos que aqui trabalharam nas plantações
de açúcar.
Celebração do Natal Madeirense |
Nos idos de quinhentos, muitos foram os escravos negros, mouros e
canarianos (guanches) que passaram passaram pela Madeira, chegando a contabilizar cerca de
10% da população residente, maioritariamente composta de gente emigrada do Minho (norte
da ilha), Alentejo e Algarve (costa sul da ilha). As crónicas antigas dão conta de
grandes romarias religiosas e festas pagãs em que os "muitos instrumentos de violas,
guitarras, frautas, rabis e gaitas de fole" (1) se juntavam a uma trovoaria de
tambores e bombos. Infelizmente, quer os rabis (instrumentos de origem árabe) e as
gaitas-de-fole (trazidas do Noroeste da Península Ibérica) se perderam no cumular dos
tempos, estando agora extintas na memória do povo.
No entanto, os cantares negros e as suas fenomenais percussões nunca se
extinguiram totalmente e, pouco a pouco, através da mestiçagem das comunidades rurais
foram penetrando nos costumes e tradições das terras.
Os mais práticos não teem qualquer problema em aceitar que a música
tradicional madeirense possui influências de várias paragens que não apenas a
portuguesa galaico-cristã. Não só por razões emocionais, mas também por razões
políticas. Assim pretende-se afirmar de alguma forma que o pote de influências
madeirense é acima de tudo um cozinhado regional, original e revelador de uma comunidade
e de uma identidade própria, não subjugada aos principios ocidentais que representam o
Continente colonialista.
No entanto, os mais teóricos salientam que ainda ninguém foi capaz de
descobrir nas sonoridades e nos instrumentos musicais da Madeira, semelhanças
predominantes com as Áfricas negra e árabe remetendo-nos para outras paragens como a
Galiza, Extremadura e Andaluzia e todo o Continente português.
A guerra vem de longe, se lermos e compararmos atentamente os livros de Carlos
Santos ou de Álvaro Rodrigues de Azevedo com as mais recentes pesquisas efectuadas pela
Associação Xarabanda contando com o apoio científico da Professora Salwa Castelo
Branco, do Instituto Nacional de Etnomusicologia, uma autoridade mundial da matéria.
Romaria Tradicional da Madeira (Picken, 1840) |
Mas entre as disputas dos etnomusicólogos e dos simples tocadores que
preservam a tradição popular, a música tradicional vai evoluindo para direcções,
muitas vezes inesperadas, sempre pautada pela introdução de factores importados. Nas
últimas décadas, instrumentos como o acordeão ou artifícios exóticos como o
brinquinho foram penetrando de forma consistente nos guardiões da tradição e seguindo a
história do 'melting pot' regional, as sonoridades foram-se alterando sucessivamente,
surgindo três tipos de música tradicional. A verdadeira, radicada nas gentes do mundo
rural; a de base, ou se preferirem a música tradicional efectuada por grupos urbanos e a
folclórica para consumo turístico, onde tudo se resume ao 'bailinho' e até se chega a
dançar alegremente cantigas de embalar.
Infelizmente e com a vinda do progresso às comunidades rurais, muitas foram as
tradições que se perderam. Em poucos anos a televisão, a música pimba anglo-americana
e a electricidade ocuparam o lugar dos despiques, dos xarambas, das mouriscas e das festas
populares onde o rajão, o braguinha, a viola de arame e a rabeca faziam as delícias das
gentes. Perderam-se trovas, bailados e instrumentos. Outros houve que se transformaram
para sobreviver e de tudo isso restaram alguns livros, memórias e lendas que ainda não
foram completamente desmistificadas.
Da música como meio de união da comunidade rapidamente se passou à música
como meio de memória de um povo e das aglomerações naturais de tocadores e cantores nas
aldeias passou-se à recolha etnomusicológica de canções e de melodias, afim de nada se
perder e de tudo se perpetuar.
Nomes como o pioneiro Álvaro Rodrigues de Azevedo (final do século passado),
Carlos Santos (nos anos 40), Artur Andrade e António Aragão (nos anos 70), Algozes e
Xarabanda (anos 80), Danilo Fernandes e outros deram-se ao trabalho de ir pelos campos
fora e com paciência e carinho não deixaram que a memória se esvaísse com a morte dos
seus guardiões. Mesmo que parte desse espólio se perdesse na má qualidade das fitas
magnéticas ou fosse depositado em frias pautas de livros, essa tarefa salvou a música
tradicional madeirense de ter sido engolida pelo tufão das modernidades eléctricas e
electrónicas, deixando aos novos grupos urbanos a responsabilidade de manter a lenda ou
recriá-la em novas visões.
Mesmo assim, nem tudo está perdido. No âmago dos vales e montanhas madeirenses
ainda se podem encontrar vestígios do que foi uma antiga cultura popular extremamente
marcada pelo poder inebriante da música e do seu cancioneiro. Por exemplo, no Porto
Santo, onde os mais antigos se lembram de despiques que duravam a noite inteira e onde na
'Meia Noite' (podem ouvir um pequeno excerto no CD desta antologia) imperava o humor e a
ironia. Nessa altura, existiam os cantadores especialistas neste e noutro baile, a 'Meia
Volta', e daí surgiam as lendas, as quadras míticas que depois eram repetidas até à
exaustão.
Na ilha da Madeira, nas profundezas tão verdejantes quanto misteriosas do Lombo
do Galego (será que as gaitas de foles por ali soaram há centenas de anos atrás?),
sítio do Faial, ainda se reunem os homens cantadores e tocadores aos Domingos e outros
dias feriados, para tirarem xarambas e bailinhos das suas vidas e fazerem ecoar pelo lombo
montanhoso acima sons de braguinhas, violas de arame, rajões, acordeões, pinhas,
reco-recos e brinquinhos. Com as vozes às vezes imperceptíveis pelo cerrado e rude
sotaque, moldadas pela crueza dos poios e das fajãs, eles cantam e desafiam a natureza a
soar tão de forma tão genuína e bela quanto a sua alma.
O certo é que durante muitos anos, pouco se ligou à evolução destas
tradições e apenas se manteve para consumo turístico os grupos folclóricos, apoiados
pelas instâncias públicas e privadas. A tónica do 'quanto mais alegre, melhor, que é
isso que o turista vem cá para ver', repetida até à exaustão por directores de
animação de hotéis e outros dirigentes ligados ao turismo, fez evoluir de forma
artificial e plástica a música tradicional e o folclore madeirense.
Nos finais dos anos 70, Artur Andrade e António Aragão meteram mãos à obra e
durante alguns anos gravaram mais de doze horas de canções, mouriscas, xarambas,
cantigas antiquíssimas e outros exemplares perdidos no tempo e que em alguns casos só
residiam bem no fundo nas memórias dos velhos. O trabalho original, primeiro editado
parcialmente em vinil (um disco ainda conservado de forma preciosa por alguns
coleccionadores) e agora felizmente reeditado na sua totalidade em CD (pela editora
Bis-Bis, em conjunto com a Direcção Regional dos Assuntos Culturais ) teve o condão de
despertar outros entusiastas e no início dos anos 80, formaram-se os Algozes, grupo de
recolhas e cantares madeirenses, do qual saíu a Associação Xarabanda, pioneira na
tentativa de levar para fora da Madeira as tradições do arquipélago.
Nos últimos anos, esta associação foi a grande responsável pela
preservação e aumento de interesse pela música tradicional madeirense e se hoje existem
editoras privadas, vários grupos a trabalhar, concertos e discos editados no estrangeiro,
muito a ela se deve.
Agora, o trabalho de grupos citadinos como os ALMMA, Banda D'Além, Verde Gaio,
Encontros da Eira, Serões da Aldeia, Gaiteiros da Sé e outros está mais facilitado. E
se já não é possível existirem ceifas abrilhantadas com a Cantiga da ceifa
ou a Cantiga da carga, porque as ceifas já não se fazem à mão, nem as
canções são cantadas, pode-se ao menos criar um novo ambiente mágico que substitua
essa vivência e seduza novas almas.
Se perdemos os sacramentos, podemos ao menos regozijarmo-nos com o que resta da
festa pagã. Esta é a direcção da nova música tradicional madeirense.
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João Marício Marques
João Maurício Marques é um dos fundadores da editora Almasud Records,
especializada em música tradicional madeirense. Licenciado em Comunicação Social, foi
jornalista dos quadros do Diário de Notícias do Funchal, produtor de diversos programas
de rádio sobre world music e música tradicional e autor do livro 'Os faunos do cinema
madeirense - 100 anos de história'.
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